sábado, 25 de julho de 2009

Revista Época: “Filha, seu pai não ama você”

Um projeto de lei e um documentário chamam a atenção para o drama dos pais separados que são afastados dos filhos por mentiras e manipulações da mãe
MARTHA MENDONÇA
André Arruda
ACERTO TARDIO
Rafaella, de 29 anos, com a foto do pai. “Fui usada como um fantoche por minha mãe. É triste.”
Dos 8 aos 26 anos, a publicitária Rafaella Leme odiou o pai. Motivo não havia. Mas isso ela só sabe hoje, aos 29. Quando fez 5 anos, seus pais se separaram. A mãe tinha sua guarda e a do irmão mais novo. Rafaella ainda tem a lembrança inicial de voltar feliz dos fins de semana com ele. Eram passeios no Aterro do Flamengo, de bicicleta ou de skate. Mas, assim que ele arrumou uma namorada, tudo mudou – a começar pelo discurso de sua mãe. “Ela passou a dizer o tempo todo que ele não prestava, que era um canalha e não gostava de verdade da gente. Era assim 24 horas por dia, como um mantra”, afirma. Rafaella acreditou. Mais: tomou a opinião como sua.

Quando Rafaella era adolescente, o pai mudou-se para o Recife, a trabalho. Nas férias, ele insistia para que os filhos o visitassem. “Eu tinha nojo da ideia. Só ligava para ele para pedir dinheiro, para mim era só para isso que ele servia”, diz. Tudo piorou quando a mãe veio com a informação de que ele estivera no Rio de Janeiro e não fora procurá-los. Durante dez anos, Rafaella cortou relações com o pai. Por mais que a procurasse, ela preferia não retornar. Até que ele parou de tentar. O laço já frágil que existia se rompeu. Aos 26 anos, ela foi fazer terapia. No divã, percebeu que não tinha motivo para não gostar do pai. Resolveu procurá-lo. “Foi uma libertação. Por mais dedicada que minha mãe tenha sido, ela nos fez de fantoches, de arma contra o ex-marido.” Com a aproximação do pai, foi a vez de a mãe lhe virar as costas. Só um ano depois voltaram a se falar. Rafaella se emociona todas as vezes que conta sua história. “Só quem passa por isso e se dá conta sabe a tristeza que é”, afirma.

O relato de Rafaella é parecido com o de muitos filhos de pais separados – com a diferença do desfecho. Nem todos chegam à revelação de que foram vítimas da síndrome da alienação parental. O termo foi cunhado na década de 80 pelo psicanalista americano Richard A. Gardner. Significa um distúrbio mental causado pela campanha de difamação do genitor que tem a guarda contra o outro. Mães, na maior parte dos casos, já que, no Brasil, elas detêm a guarda das crianças em 95% dos casos de separação. Pode acontecer de várias maneiras, de não passar telefonemas e suprimir informações médicas e escolares a inventar motivos para que as crianças não vejam o ex ou mudar de endereço sem avisar. O mais grave, no entanto, é, como definiu o próprio Gardner, a “programação” para que a criança passe a não gostar do genitor que não vive com ela, o que se dá por palavras, atitudes silenciosas ou pela implantação de falsas memórias.

O número de casos de alienação parental no Brasil e a grita dos pais chegaram a um nível tão alto que provocou o Projeto de Lei 4.053/2008, que no último dia 15 foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados. O projeto, de autoria do deputado Régis Oliveira (PSC-SP), define e penaliza a alienação parental: o genitor que tentar afastar o filho do ex pode perder a guarda e, se descumprir mandados judiciais, pegar até dois anos de prisão. Há outros sinais de inquietação da sociedade com o assunto. Desde abril está sendo apresentado por todo o país o documentário A morte inventada. O filme, do cineasta carioca Alan Minas, de 40 anos, revela o drama de pais e filhos que tiveram seu elo rompido após a separação conjugal, além de apresentar a opinião de especialistas. Jovens falam de forma contundente e emocionada sobre como a alienação parental interferiu em sua formação. Pais dão testemunho sobre a dor da distância. Diante do inferno em que se transformaram suas vidas e da impotência diante disso, muitos desistiram – o que costuma ser o pior desfecho. Minas diz que foi o tema que o “escolheu”. Há mais de um ano ele foi afastado da filha, que hoje tem 10 anos. Sem entrar em detalhes, ele conta que sofre com a alienação clássica: campanha de difamação junto à criança, descumprimento da visitação e falsas acusações. “Como não encontrei voz como pai e cidadão, resolvi fazer o filme”, afirma. As salas de exibição têm estado cheias de pessoas com histórias parecidas. Nos debates e nas palestras que acontecem depois da apresentação do documentário, vítimas fazem questão de dar seu relato. A procura foi tamanha que A morte inventada saiu em DVD no mês passado.


André Arruda
CAUSA PRÓPRIA
Alan Minas, diretor do documentárioA morte inventada. “Fiz o filme por não ter voz como pai”

Essa discussão tem crescido em todo o mundo e se tornado um dos pontos polêmicos do Direito de Família. O motivo é a escalada de divórcios – só no Brasil, quadruplicaram em 20 anos –, aliada a uma nova visão da figura paterna. Os pais, que aos poucos deixam de ser coadjuvantes na criação dos filhos, não querem mais que haja um corte de laços na hora da separação. A noção tradicional de que, para uma criança, basta a mãe caiu por terra. Multiplicaram-se, no mundo inteiro, as associações de pais separados. No Brasil, há a Associação dos Pais Separados (Apase), Pai Legal e SOS Papai, entre outras.

Quando se fala do projeto de lei contra a alienação parental, porém, há muitas dúvidas. As diversas formas de alienação parental costumam acontecer de forma sutil, entre quatro paredes – e muitas vezes disfarçadas de amor e cuidados. Como detectar e punir esse tipo de coisa? Mas o juiz paulistano Elizio Perez, um dos idealizadores do projeto, acredita que, com esse instrumento, o Estado e o Judiciário passarão a reconhecer oficialmente a questão. “Essa lei vai dar força jurídica para que a alienação parental seja combatida. E com certeza vai ser uma ferramenta preventiva muito importante. Hoje, a impunidade do genitor alienador é que o faz seguir em frente”, afirma. No resto do mundo não há uma lei específica sobre o assunto. Mas, em países como Estados Unidos, Alemanha e Canadá, tem sido cada vez mais comum a inversão da guarda quando o genitor que a detém não permite ou não incentiva o convívio da criança com o outro genitor. É um tipo de “sabedoria salomônica” que deveria constar do currículo de qualquer juiz, independentemente de lei.

Advogada e psicóloga da PUC-RJ, Alexandra Ullmann tem estudado o fenômeno da criação de uma memória não real em filhos de pais separados em litígio. “O ser humano não se lembra claramente do que lhe aconteceu até seus 4 ou 5 anos. Se a mãe ou o pai que vive com o filho informá-lo sobre acontecimentos do passado, ele vai acreditar e criar lembranças irreais”, afirma. Se uma mãe disser que o pai não sabe cuidar dele ou que o abandonou, vai tomar como verdade. O resultado é a rejeição ou a alienação do genitor que não tem a guarda. “Muitas mães enchem a boca para dizer que são os filhos que não querem nada com o pai. Mas como eles poderiam escolher?”, diz a psicóloga.


Anderson Schneider
VENENO DIÁRIO
Karla, de 31 anos. Entre os 2 e os 19 anos, ela só ouviu histórias falsas sobre o pai. “Fui enganada”

Falsas memórias fazem parte da vida da advogada maranhense Karla Mendes, de 31 anos, que hoje mora em Brasília. Seus pais se separaram quando ela tinha 2 anos e, durante sua infância, conviveu com os piores relatos possíveis sobre seu pai, de quem foi afastada. “Todos de minha família diziam que ele batia em minha mãe e em nós, que ele não nos sustentava direito e que era um homem perigoso”, afirma. “Depois minha mãe se casou de novo e fui obrigada a chamar meu padrasto de pai, sob pena de não ganhar presentes de aniversário ou Natal.” Quando ela tinha 8 anos, o pai ganhou na Justiça o direito a vê-la. “Parte de mim queria aquele pai verdadeiro, mas a outra tinha muita raiva. Eu acreditava que ele tinha me abandonado. Apesar de nunca ter parado de pagar a pensão de 40% de seu salário”, diz. O pai de Karla disse que no dia seguinte a levaria para jantar. Mas, segundo ela, a mãe deu um jeito de acabar com o programa. Ela ligou para ele e disse que a menina não queria ir de jeito algum. “Eu fiquei pronta, esperando, e ele não apareceu”, diz. “O pior foi que ela o convenceu de que eu não queria saber dele também.” Aos 19 anos, Karla foi morar sozinha. Só então retomou o contato com o pai, que a procurou. Hoje são amigos. “Mas não foi fácil descobrir que minha vida foi uma mentira. Não sei que dor é maior: de ter crescido sem pai ou de ter sido enganada pela mãe”, afirma.

Falsas acusações de abuso sexual estão entre as discussões mais fortes do documentário de Alan Minas. A psicanalista carioca Andréia Calçada, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, trabalhou por cinco anos com o pediatra e psicólogo americano Christian Gauderer, pioneiro nos estudos do autismo e, recentemente, da síndrome da alienação parental. Ela conta que os juízes das varas de família americanas começaram a perceber um número crescente de acusações de abuso sexual nos casos de divórcio litigioso. A investigação mostrou que a maioria era falsa. No Brasil, o costume é afastar completamente o acusado da criança enquanto a perícia é feita. Mas essa avaliação pode durar anos. “Se for mentira, um pai estará perdendo contato com seu filho, talvez de forma irreversível, injustamente. Sem falar que, mesmo depois de ele ser inocentado, como fica a cabeça dessa criança? Tenho uma paciente de 6 anos num caso como esse. Ela está sendo reaproximada do pai com acompanhamento judicial. Mas a mãe continua dizendo a ela que o pai é um monstro”, afirma.

A falsa acusação de abuso sexual tem sido o último recurso de uma mãe (ou pai) que tenta afastar seu filho do ex- -cônjuge. Mas sua gravidade não tira o peso das outras atitudes do dia a dia. Segundo o psicanalista americano Douglas Darnall, em seu livro Protegendo seus filhos da alienação parental, “o genitor alienador é produto de um sistema em que todo o seu ser se orienta para a destruição da relação dos filhos com o outro genitor”. Para a ex-desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, a mudança do conceito de família criou a exigência de um novo olhar sobre os casos de síndrome da alienação parental. “Estamos vivendo uma outra era, em que se reconhece o dano afetivo causado pela ausência dos pais, tanto quanto das mães”, afirma. Um dos passos mais importantes no combate à alienação parental deverá ser a inclusão da síndrome, no ano que vem, na nova versão do DSM-IV, o Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais, atualizado periodicamente pela Associação Americana de Psiquiatria. Ao ser transformada em doença, a síndrome da alienação parental deverá dar mais um passo para conquistar o foco que merece. As crianças agradecem.

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI84231-15228-1,00-FILHA+SEU+PAI+NAO+AMA+VOCE.html

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